“PODEMOS AFIRMAR QUE ESTAMOS NO CAMINHO CERTO. O FUNDINHO FESTIVAL DEMONSTROU ISSO”.
A gente, produtor cultural, sabe o que tem por trás de cada evento. Reconhece as angústias e a ansiedade que pautam cada resultado. Entende a matemática de cada número que se movimenta para que uma cena, um som, uma barraca, um cesto de lixo e algumas centenas de pessoas se estabeleçam e milhares de outras exercitem a contemplação. Quando se vê a coisa pronta, o circo armado e a alegria contagiante, poucos são os que percebem a soma de esforços por trás de tudo isso. É muito bom ver a cidade em um clima cosmopolita, com atrações de qualidade, entrando em um circuito de festivais de jazz como existe em várias cidades de pequeno e médio porte e capitais brasileiras. Foi essa a atmosfera, em início de agosto, na praça Clarimundo Carneiro, com a segunda edição do Fundinho Festival. É bom reconhecer o trabalho de quem desbrava esse território de eventos culturais,
o que requer coragem, determinação, paciência e comprometimento, sobretudo em se tratando, muitos hão de concordar, de uma cidade às vezes árida, sem assimilar conteúdos além da rasadura do fácil consumo. Difícil é entender, por exemplo, como um projeto dessa envergadura não conseguiu sua aprovação na Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Por mais que sejam recursos escassos, já contribuiriam um pouco mais para acentuar a imponência do evento.
A produtora responsável pelo Fundinho Festival é a Moinho Cultural, de Marcelo Mamede e Marcus Tulius Morais. E essa é a segunda edição do evento. Foram duas belas noites, resultantes, tenho certeza, de centenas de outras noites maldormidas de muito empenho e trabalho. Que o projeto se consolide, não somente em sua perspectiva de continuidade, mas também como uma referência nacional para os músicos brasileiros e quiçá internacionais. Com o promissor crescimento do projeto, fica a sugestão de dar um tom de mais diversidade na grade de programação. O “Jazz fusion”, predominante no programa, é muito bem-vindo, mas seria ainda melhor ter um pouco do “traditional jazz”, sobretudo em poderosas vozes femininas. No Brasil há representantes muito dignas, que figuram internacionalmente neste universo, como as maravilhosas Leni Andrade e Rosa Maria Cohlen, entre outras. No caso dessa edição, mesmo com a predominância do “Jazz fusion”, evidenciada ainda mais pelo fantástico show de encerramento com a banda Blues Beatles, agradou a gregos e troianos e consolidou este segundo ano do projeto como necessário e imprescindível para o calendário oficial de Uberlândia.
O Fundinho Festival, assim como outras iniciativas culturais na cidade, vem para colocar fim ao marasmo cultural que nos apregoa. Estão chegando ao fim os anos intempestivos de “perseguição” à cultura e tentativas de diminuir a sua importância. Qualquer pessoa de bom senso a reconhece como “uma das bases de uma sociedade saudável”.
A abstinência à qual se recolheram alguns artistas está findando e, mais uma vez, entre tantas na história da humanidade, a arte ressurge potente e visceral, com potencialidades transformadoras. Por cada momento de fruição da arte, ficamos gratos e emocionados por algo que deveria fazer parte de nosso cotidiano. Qualquer respiro de cultura e alegria já nos consome nessa gratidão, como se não nos fosse de direito, como já dizia Guimarães Rosa (referindo-se ao amor), um descanso na loucura. Bom mesmo seria se não precisasse existir tanto esforço para a Moinho colocar esse bloco na praça, pra gente e outros produtores colocarmos a melodia e a cena nos palcos, para músicas como a do “bluesmanMaurício Winckler Perdomo reverberar em todos os cantos dessa cidade, para todos os espaços culturais sobreviverem abrigando artistas felizes e preocupados apenas com a produção de seus processos criativos.A verdade é que seguimos, ainda que inconformados, felizes, ao menos por alguns momentos, com tudo aquilo que nos abasteça de arte, mesmo conscientes que esse abastecimento deveria vir cotidianamente, transformando a cidade. Já nos damos por satisfeitos quando o espaço da praça é aberto e ruas são fechadas abrindo guarita para a arte, ainda que praças e ruas sejam públicas e existam também para isso. Estamos carentes disso tudo e já nos contentamos com pouco. Dentro desse pouco, na ânsia do muito, tudo se agiganta. Foi o que aconteceu com o Fundinho Festival. Já nasceu grande, mas agigantou-se pelo empenho de seus realizadores e também pela sede de conhecimentos e vivências que tem o seu público. É o que acontece com a gente, com todos nós que nos emaranhamos nessa necessidade de fazer acontecer, nos jogamos inteiros e agradecemos por tudo o que venha como alento e incentivo, ainda que isso devesse ser absolutamente natural. Deveria ser natural e frequente a boa música assumir a praça, e nela já existir naturalmente uma estrutura disponível para essa ocupação, com cidadãos abrindo audição, corações e mentes para esses momentos. Deveria a arte fluir com naturalidade em vários locais artisticamente potentes em nossa cidade.
O que a Moinho Cultural faz com este festival, o que Maurício Winckler faz com o seu circuito de blues, o que eu e outros produtores fazemos com eventos de teatro, dança, música e literatura. É apenas um esforço para extirpar de Uberlândia a sua vocação para um futuro árido, a sua tendência como cidade progressista de ser próspera, mas fria e sem alma, por não ter a arte latente. Acho que podemos afirmar que estamos no caminho certo. O Fundinho Festival demonstrou isso, Winckler demonstra isso e todos nós demonstramos isso, nem sempre com o ânimo e a positividade necessários, mas cambaleamos sem cair. E prosperamos em nossas convicções, na certeza de que um dia a cidade possa responder com a veemência que a arte merece, transformadora que é, até ser parte essencial na vida da população. Sigamos nessa sina, embevecidos, quase missionários, propagando a arte e acreditando que ela chegue um dia ao posto que lhe cabe, de alimento imprescindível para a alma e o coração da cidade.