Thiago Ribeiro | Triatleta – Ironman
“Nilsão é um raro exemplar de um corredor absurdamente fora da curva”
O que você faz para enfrentar momentos de dificuldade? Eu procuro pensar em
quem me inspira. Hoje vivemos a ameaça de uma doença que desconhece
fronteiras. Que convive com a fome dos amontoados e com a abundância dos
abastados. Uma doença que prende da porta para dentro os privilegiados e
quase expulsa da porta para fora os que dependem da rua para colocar o pão
de cada dia dentro de casa. Hoje vivemos uma quarentena por tempo
indefinido. Hoje enfrentamos angústia, incertezas. Excesso de perguntas, falta
de respostas. Nesse cenário caótico, o primeiro que me veio à mente foi o
Nilson Lima. Talvez você já tenha cruzado com ele por aí, sem ter a mínima
ideia do que ele já fez – e continua fazendo. As aparências enganam, mas os
hábitos não. E muito menos os apetrechos. Nas madrugadas, a cidade ainda
descansa em sono profundo, enquanto ele passa correndo para lá e para cá
em sua terapia diária. Quando todos acordam, ele já de banho tomado e
barriga cheia deixa vestígios que denunciam seu estilo de vida. Um
despretensioso – e repleto de valor sentimental – boné de uma das tantas
maratonas que completou, ou mesmo o tênis com um solado alto e estranho.
Marcas registradas dos que se aventuram em sair correndo por aí. Até aqui,
poderia ser qualquer um que gosta de correr e leva isso como um estilo de
vida. Mas o Nilsão vai além. Muito além. É uma lenda, uma inspiração. Tanto
para os que arriscam os primeiros passos neste universo particular da corrida,
quanto para os que seguem acumulando horas e horas de passadas
consistentes. O Nilsão já passou a régua em todas as maratonas da América
do Sul. De São Paulo a Bogotá, da Patagônia a Manaus. Fez uma maratona
em cada estado dos Estados Unidos. Já fez Londres, Chicago, Berlin, Tóquio,
Nova Iorque, Boston. Todas as “Six Majors”. E algumas delas várias vezes.
Como se não bastassem maratonas, um dos marcos culturais da África do Sul
é uma famosa corrida chamada Comrades. Uma ultramaratona de 90
quilômetros, que nasceu e se alimenta da recente e sofrida história de um povo
tão rico em vida e força. O Nilsão segue acumulando medalhas da Comrades e
lá marca presença há 7 anos. Em busca da 10ª, do Green Number, e muito
mais. No total, são quase 300 maratonas e ultramaratonas mundo afora. Os
números impressionam, mas não contam toda a história. Quem conhece sabe:
o Nilsão é uma aula viva de humildade. Ele não é só um raro exemplar de um
corredor absurdamente fora da curva. Ele é bem mais que isso: um inestimável
exemplo de ser humano. Dono de um coração gigantesco, ele absorve nos
momentos mais simples o que tantos procuram a vida inteira e não acham. Na
simplicidade de colocar um passo após o outro, sem pressa e com um baita
sorriso no rosto, o Nilsão transborda felicidade. Quer um exemplo? Um
momento que lembro como feliz da minha vida foi acordar às 3 da manhã em
um modesto hotel de Bertioga e juntos comemos um pão envelhecido do dia
anterior antes de seguirmos espremidos no carro para a largada de uma prova.
Momento simples, mas cheio de alegria. Por isso, hoje é o Nilsão que me vem
em mente. Para manter viva na mente a noção de que a vida é feita da reunião
de vários momentos comuns, e alguns poucos momentos extraordinários. E
que a tal da felicidade pode (e com certeza vai) estar escondida até mesmo
nas coisas mais corriqueiras.