Para o bem e o mal, o mundo virtual fez-se latente no cenário devastador.
Em novembro passado estávamos todos otimistas, fechando um ano ímpar bastante complicado e prevendo reconquistas para o par que se aproximava, favorecidos pela numerologia e pela esperança de dias melhores. E tudo sinalizava para que assim fosse. Seguimos na despedida das intempéries e esforços acumulados de um fatídico 2019 e prosseguimos energizados, com a fé na vida. Mal sabíamos da travessia sob ameaça da morte. Os ares veraneios e foliões dos dois primeiros meses não levantaram suspeita sobre a interrupção de nossos planos. A crença em um ano promissor parecia inabalável. Os corpos em férias e outros em laborioso movimento ainda não revelavam a fragilidade da civilização que seria anunciada em algumas semanas. Veio março e suas águas não redimiram a angústia. Espalhou-se medo e não houve medidas protetivas que abrandassem os temores. O tempo correu e corpos sucumbiram ao vírus, milhares no país, centenas na cidade e milhões no mundo. A humanidade em pânico fechou as portas. Mas janelas foram abertas em busca de refúgio, as janelas da arte, as janelas da internet. E os olhos, a janela da alma, ficaram expostos com uso da indumentária que marcou este início de década. E passamos a dizer com eles e a sorrir com eles.
Se estes longos nove meses deixaram nossos olhares confinados por janelas abertas, frestas para um mundo desejado, escancarou-se também a queda das máscaras, não do acessório que nos foi infligido, mas daquelas de mentes torpes, militâncias oportunistas e desvios da caminhada envaidecida pelo espírito narcisista. Ironicamente, o território da internet, que apenas espelha supostas realidades, tornou-se o medidor das verdades que se pretendem, das que são de fato e das que beiram a hipocrisia. Para o bem e para o mal, o mundo virtual fez-se latente no cenário devastador. Os esquecidos foram lembrados, glamorosos foram apagados, debates acirrados travaram duelos entre vida, economia e política. E cá estamos nós, já no fim de um ano sinalizado em negrito no calendário do planeta. Um ano perdido? Não. Absolutamente não. Um ano de perdas sim, perda de vidas, perda de humanidade, perda até de caráter e de ética. Mas, de ganhos também. Ganho de consciência sobre a importância de valores que até então pareciam fadados ao desprezo e ao ostracismo, sobre a importância da arte inclusive, cuja presença, ainda que virtual, foi marcada como alento às angústias, ao medo e à solidão.
A pandemia, para alguns, trouxe aprendizados. Para outros, o marasmo, a inerte mesmice do egoísmo de verdades próprias e de intolerância à coletividade. Poderes caíram, outros foram fortalecidos. Falências foram decretadas, outros saíram enriquecidos. Foi o ano da dicotomia. Talvez continue assim por mais alguns meses, pelo menos. Afoitos que somos, acreditamos na redenção. Éramos cansaço de um mundo enraivecido e dividido. Mas, ela não veio. Não fomos redimidos e expurgados de nossos desatinos. Ainda. A provação de um ano turbulento, em um mundo doente, revelou-se apenas o início de uma possível transformação em nível mundial, desde que nos mostremos merecedores dela e saibamos como persegui-la, de forma coesa e responsável. Os (des)caminhos que nos trouxeram até aqui devem servir para algo. E são determinantes para a definição de nosso destino. Ainda há muita vida para fluir. Muita arte para fruir. Sigamos!
Carlos Guimarães Coelho é jornalista e produtor cultural.